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Estamos assistindo a uma das maiores cenas de horror, de racismo, preconceito social do novo século. Trata-se das vítimas do furacão Katrina. Confira no relato abaixo e de alguëm acima de suspeita, Guy Dinmore, do Financial Times.
Nossa solidariedade ao que sobrou da comunidade software livre de Nova Orleans e de todo sul dos EUA.
Guy Dinmore (Financial Times; UOL, 5/9/2005)
Quando a maior parte dos últimos moradores ilhados foi evacuada de Nova Orleans no final de semana, somente os mortos ficaram para testemunhar uma altamente polêmica iniciativa de salvamento que expôs as divisões raciais e a pobreza do "Sul Profundo" dos Estados Unidos
Seis dias após o furacão Katrina devastar a costa do Golfo, os mortos ainda jaziam abandonados ou boiavam pelas ruas desta cidade submersa, esperando pela sua vez de receberem atenção. "Não temos ordens para recolhermos corpos, mas de fazê-los submergir, caso estejam boiando, e, a seguir, marcarmos o local", disse um policial de Nova Orleans, que acrescentou: "Não temos onde colocá-los".
Os corpos incharam ao sol, abandonados ao longo dos elevados que cortam a cidade de 1,5 milhão de habitantes. Esses elevados, em sua maioria, se transformaram agora em autênticas rampas aquáticas. Os mortos flutuavam com os membros estendidos nas águas escuras abaixo. Com o trabalho de resgate dos vivos a todo vapor, os defuntos espalhavam-se negligenciados, enquanto comboios de soldados, policiais, paramédicos e equipes embarcadas de resgate vindas de locais tão distantes como a Califórnia e Illinois cruzavam o cenário devastado.
Um homem seminu poderia ser confundido com um indivíduo adormecido, com a cabeça apoiada sobre um travesseiro, se não fosse pelo seu estômago tremendamente inchado de cadáver, devido ao calor escaldante.
A negligência para com os mortos, apesar do perigo admitido publicamente de eclosão de doenças como a cólera, reflete a abordagem compartimentada da operação de evacuação que, na tentativa de se organizar tudo segundo um modelo militar, acabou descambando para um esquema de ação emperrado pela rigidez.
Os ônibus são capazes de levar apenas grandes grupos de pessoas em comboios extensos, de forma que os pequenos grupos e os indivíduos isolados acabam sendo ignorados. A cidade faz lembrar o cenário de uma zona que acabou de passar por uma guerra. As ruas desertas estão cheias de destroços e lixo, e grupos numerosos de desabrigados permanecem unidos para se protegerem do saque generalizado, dos incendiários ocasionais e dos estupradores.
E, mesmo assim, ao contrário do que ocorre nos casos de trauma imediato de pós-guerra, não há funcionários da Organização das Nações Unidas (ONU) atuando na cidade e montando abrigos para os necessitados, e nenhuma organização não governamental como a Médicos Sem Fronteiras presta assistência aos flagelados. Esta é uma operação totalmente norte-americana e preponderantemente oficial, o que significa que é muito pesada e lenta para começar a funcionar. Os cidadãos que tentam entrar na cidade para ajudar ou inspecionar as suas casas são bloqueados em barreiras militares.
Com as recriminações se acumulando e o presidente George W. Bush procurando dividir a culpa com outros, as autoridades alegam que e enorme extensão da calamidade os sobrepujou. Cerca de 80% da cidade, grande parte construída abaixo do nível do mar, entre um grande lago e um rio poderoso, continuam debaixo d'água. As áreas costeiras do leste do Mississipi também foram devastadas.
Dezenas de milhares de pessoas ignoraram a ordem para evacuarem a região e fugirem antes da chegada do Katrina no domingo retrasado. Mas, àquela altura, dezenas de milhares não tinham mesmo como sair de Nova Orleans. Uma dessas pessoas é Connie Emalle, funcionária de um hotel de Nova Orleans, que no último sábado colocava os seus pertences em uma caixa de plástico sobre uma cadeira de escritório com rodinhas, enquanto aguardava em uma fila de pessoas que caminhava vagarosamente rumo a um contingente armado da Guarda Nacional encarregado de embarcá-las em um ônibus. Ninguém sabia para onde o ônibus as levaria. Talvez para Houston, no Texas.
Os idosos, fracos e crianças pequenas estavam entre os últimos a partir. Quase todos eram negros e muito pobres. Tudo o que eles sabiam era que finalmente deixariam o Centro de Convenções, um amplo complexo de salões, lanchonetes e salas de reuniões, onde ministro das finanças do continente americano costumavam se reunir em eventos esplendorosos. Mas desde que as águas invadiram tudo na terça-feira passada, o complexo se transformou em refúgio para milhares de pessoas, e depois em uma espécie de prisão. Mas, segundo os refugiados, o local é pior do que uma prisão, já que eles não contaram com segurança, comida, água ou energia elétrica durante três dias. Durante esse período, meninas e meninos foram estuprados e tiveram suas gargantas cortadas. Corpos foram empilhados nas cozinhas, enquanto saqueadores e loucos trocavam tiros com as armas que saquearam de lojas.
Ninguém que encontramos disse ter visto de fato os corpos, mas, enquanto os últimos refugiados deixavam o local, três soldados fortemente armados da Guarda Nacional chegaram arrombando portas e iluminando salas e corredores com tochas, afirmando que tinham ordens de encontrar os mortos. Na rua em frente jazia o corpo de um homem baleado na cabeça, coberto com lençóis escuros e rodeado por cadeiras de escritório, como se tivesse sido objeto de uma discussão empresarial. Um homem que só se identificou como "IP" disse ter visto a polícia matar o indivíduo no dia anterior, quando este entrou no caminho do comboio que trazia o prefeito, que viera inspecionar o local. Um soldado da Guarda Nacional confirmou que o homem foi morto pela polícia.
Todo o complexo fedia a excrementos. Montes de lixo, roupas e fraldas abandonadas, podiam ser vistos por toda parte. Phyllis Riley, 51, procurando manter a dignidade, mesmo vestindo roupas sujas de vômito, se desculpou pela condição em que se encontrava, mas disse que sofre de asma, e que mal pode respirar, e que não viu um único profissional de saúde durante os cinco dias que se seguiram à chegada do Katrina.
Em meio ao intenso terror por se sentirem totalmente abandonadas durante vários dias, antes que uma discreta ajuda começasse a chegar, as pessoas se apegavam desesperadamente aos boatos. Emalle ouviu dizer que três navios de guerra foram desviados do Iraque para cá, incluindo um porta-aviões. "O porta-aviões resgatará as pessoas no centro da cidade, onde a profundidade da água chega ao peito", disse ela confiantemente. Geraldine Lavy contou que o filho protegeu quatro turistas australianas de estupradores no centro de convenções. "Dá para imaginar? Quatro mulheres brancas sozinhas naquele local?". E depois ela xingou o seu governo, perguntando como a Embaixada da Austrália foi capaz de evacuar os seus cidadãos, enquanto que ela ficou atolada neste inferno, estando agora separada do filho, depois que foi levada de ônibus para o aeroporto.
Lavy ecoava os sentimentos e as palavras de vários negros norte-americanos com os quais conversamos durante o final de semana. Embora muitas vezes heróicos e estóicos em face da morte e da depravação à sua volta, eles estavam profundamente irritados e furiosos com os brancos ricos que governam o país. "Eles abriram os diques para salvar os seus bairros e proteger os seus investimentos", declarou Larry Crawford, 34, acreditando sinceramente, como muitos outros, que alguns distritos foram deliberadamente inundados para aliviar a pressão sobre os diques que protegiam áreas onde moram brancos afluentes.
Isso é algo inconcebível hoje, mas foi o que aconteceu em 1927 durante a grande inundação do Mississipi que deixou milhões de pessoas desabrigadas. Mas não foi só isso. Conforme John Barry documenta na sua história social, "Rising Tide", grupos de trabalhadores negros foram mantidos como virtuais prisioneiros em esquálidos "campos de concentração" enquanto fortaleciam os diques para proteger as plantações. Vários negros norte-americanos que moram no norte são descendentes daqueles que abandonaram o Delta do Mississipi naquele ano, depois que os proprietários de terras escaparam da enchente em um barco a vapor ao som da música "Bye, Bye Blackbird".
Nesta semana, quase nada foi dito na mídia ou pelas autoridades sobre o bairro pobre de Chalmette, no leste da cidade. Várias das casas, cujo número total, segundo as autoridades, é de 27 mil, estão totalmente submersas. Acredita-se que lá a quantidade de mortos seja a maior, possivelmente chegando a milhares, de acordo com a polícia. Várias centenas de corpos teriam sido recolhidas por moradores em apenas uma escola. As autoridades, que não estão recolhendo corpos porque não receberam ordens para fazê-lo, dizem não ter idéia de quantas pessoas morreram. Um membro do governo disse no sábado, em uma entrevista coletiva à imprensa, que o número de mortos pode chegar a mil ou dois mil. Alguns dizem que Nova Orleans jamais se recuperou da enchente de 1927. A idéia de que havia um pacto de boa convivência entre os negros e a classe branca dominante desmoronou.
Nesta semana, a raiva se agitava como as águas furiosas do Mississipi. Uma pichação na parede de um depósito em um bairro pobre do oeste da cidade proclamava: "Eles nos abandonaram aqui. Esses canalhas nos inundaram. Fuck Bush". Próximo dali, lia-se em vermelho, na parede de uma outra fábrica em chamas: "Vocês saqueiam, nós atiramos. Saqueadores serão mortos a tiros".
"Apenas nascemos com a cor errada", gritava Larry Martin, um dos últimos a deixar o Centro de Convenções. "Se essas pessoas fossem um grupo de norte-americanos caucasianos, isto nunca teria acontecido. Eles teriam retirado todo mundo. Tudo o que vocês ouviram é verdade. Só obtivemos comida e água na sexta-feira (o quarto dia no interior do complexo). Os saqueadores e atiradores atiravam contra os ônibus. E havia estupradores, assassinos e os que submetiam as pessoas à sodomia".
Em várias coletivas à imprensa, comandantes policiais e militares condenaram os saqueadores. "Estamos retomando as ruas", declarou um deles. "Estamos de volta, nem um centímetro da cidade será cedido aos criminosos". Mas não dá para explicar como mais de 100 mil pessoas puderam ser abandonadas à própria sorte. Os policiais locais que ficaram na cidade disseram ter feito o que podiam, mas alegaram que não contavam com meios de comunicação adequados e que, em muitos casos, eles perderam as próprias casas e tiveram que residir nos seus carros de patrulha.
A Guarda Nacional não chegou em números significativos até a sexta-feira e a segurança só foi realmente restaurada no sábado. O que torna tudo isso ainda mais difícil de se entender é que a logística da operação de resgate não era algo assim tão impossível. Tanto o Superdome quanto o Centro de Conferências, onde a maioria dos refugiados se concentrou, ficam próximos a vias elevadas que são as rotas de saída da cidade. Multidões chegaram a caminhar até essas rodovias e a cruzar a ponte principal sobre o gigantesco Mississipi, mas foram obrigadas a retornar por policiais que disparavam para o alto.
No domingo, parecia que a grande maioria da população evacuada estava finalmente a caminho das suas novas vidas em outros Estados, seja como refugiados em campos construídos às pressas, seja como hóspedes de famílias generosas. Esquadrilhas de helicópteros retiravam os refugiados remanescentes de telhados, enquanto barcos navegavam pelas avenidas submersas. O aeroporto da cidade operava com capacidade total, e o distrito vizinho de Kenner tinha até energia elétrica, embora faltasse água, e alguns poucos hotéis estavam recebendo hóspedes.
Segundo o corpo de engenheiros do Exército, poderá demorar meses até que as partes rompidas dos diques sejam reconstruídas e toda a água seja bombeada para fora da cidade. Mas as recriminações deverão continuar por um período bem mais longo.
Fonte: UOL
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