terça-feira, agosto 23, 2005

Ronaldo Lemos no JB: Tecnologia impõe mudanças à lei




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É possível que poucos relacionem o termo jurídico propriedade intelectual aos cliques diários, mas o conceito que transforma criações em produtos comercializáveis é usado para restringir conteúdo e impedir que a Rede se configure como o ''livre território do conhecimento''. A interferência da tecnologia no Direito e as consequências para os usuários estão em Direito, tecnologia e cultura , de Ronaldo Lemos.

O advogado da FGV já é conhecido por representar o Brasil no Creative Commons que, com licenças próprias, simplifica a publicação de produtos culturais em formato digital. Em entrevista ao JB, Lemos fala sobre as diferenças entre a legislação americana e brasileira, como acontecem as restrições de conteúdo e de desenvolvimento tecnológico, e os caminhos à margem da indústria cultural. Para quem for conquistado pela defesa dos direitos das criações artísticas e circulação de informações online, Lemos adianta que está fazendo o prefácio da versão brasileira de Free Culture , a bíblia de Lawrence Lessig sobre Direito na era digital, que está sendo traduzida por voluntários.

Quais são as principais questões que a tecnologia trouxe ao direito autoral ?

A tecnologia se tornou um instrumento de fechamento virtual das obras autorais. Antigamente, a forma de proteger um bem cultural era a lei, hoje a tecnologia é também uma forma de proteção que causa uma série de problemas. Muitas vezes, ela contradiz a legislação e se torna uma expansão da propriedade intelectual que prejudica o acesso à cultura.

Essa nova realidade tem que se adaptar às leis tradicionais do Direito ou é o Direito que deve se moldar a essa realidade?

É preciso que a sociedade resgate o valor da existência da propriedade: incentivar a criação de obras, para que o sistema permita a sociedade um acesso justo ao conhecimento e não a utilização de tecnologia como reserva de mercado.

O que foi o Digital Millennium Copyright Act (DMCA) e quais são as influências deste ato no Brasil?

O DMCA é muito importante porque representa a virada. Durante todo o século 20, a propriedade intelectual foi equilibrada pelo conflito entre detentores da tecnologia e usuários, com vitória da liberdade do desenvolvimento da tecnologia. A partir da década de 90 isso mudou: os detentores começaram a ter poder para decidir os caminhos da tecnologia. A marca dessa mudança na legislação é o DMCA - os EUA foram o primeiro país a adotar uma lei para decidir o futuro da tecnologia e retirar conteúdo do ar.

Como essa censura acontece?

Em casos como o de um professor de Princeton, Eduard Felten, que escreveu sobre o sistema de proteção tecnológica dos CDs anticópia. Era um trabalho acadêmico sobre criptografia, que não tinha relação com pirataria. A indústria musical, com o respaldo do DMCA, processou o professor. Na Rússia, Dmitri Sklyarvo desenvolveu um leitor de e-books pra Linux que usava uma quebra de PDF. Assim que ele desembarcou em Las Vegas para mostrar o sistema, foi preso. Isso é reflexo de um sistema que criminaliza qualquer tentativa de quebra de proteção tecnológica, mesmo se for para uso legítimo.

Como o usuário médio é afetado por isso?

A incompatibilidade dos formatos é o maior problema da expansão da indústria digital porque se você comprar no Napster, por exemplo, não consegue ouvir a música no iPod. E se você comprou uma música e um tocador de MP3 é justo que você queira ouvi-la, mas se você quebrar a proteção pode ser preso pelo DMCA. No Brasil, o problema é evidente ao comprar um DVD fora do país e raramente conseguir ouvi-lo nos aparelhos daqui. A indústria acaba se moldando de acordo com as exigências dos detentores de conteúdo e o acesso à informação é limitado.

No livro, você menciona o projeto que especifica e regulamenta a responsabilidade dos provedores, que também podem ser usados para restringir conteúdo.

É complicado processar usuários individuais, mas é fácil controlar provedores. Se você responsabiliza o provedor pelo conteúdo do usuário, você tem uma arma poderosa para facilmente censurar informações. Nos EUA, assim que o provedor recebe a notificação de um conteúdo que está incomodando alguém, tem que tirar o site do ar. O provedor até poderia analisar e julgar, mas como ele é imediatamente responsabilizado, tira do ar antes e pergunta depois.

Quais são, em linhas gerais, as principais diferenças entre a legislação do direito autoral nos EUA e no Brasil?

Apesar de todas as restrições da legislação americana, ela define de quem é a responsabilidade. No Brasil ainda não existem leis específicas, apenas regras do Código Civil, que dependem da interpretação de cada juiz. Isso prejudica o desenvolvimento de negócios, já que o provedor nunca sabe qual será o limite de sua responsabilidade.

Isso também prejudica iniciativas como programas de construção de conhecimento colaborativo, nos moldes da enciclopédia virtual Wikipedia.

Sim, porque um juiz pode considerar que o criador do site é responsável pelo conteúdo publicado.

De que maneira o software livre altera esse modelo e de que modo as mudanças da tecnologia influenciam produtos tradicionais, como CDs ?

O software livre não chega a alterar leis, mas mostra que outros modelos de negócio na Rede são viáveis e estimulam uma produção de conhecimento à margem. Na cultura, isso se manifesta em gêneros como o tecnobrega, o lambadão cuiabano ou o forró, que já são auto-reguláveis e independentes. A música é distribuída por outros canais - sem relação direta com a indústria tradicional.

Quais são as mudanças mais urgentes na legislação autoral brasileira?

Regulamentar limites e exceções, já que atualmente o Brasil impõe mais limitações aos usuários do que determina o acordo feito pela Organização Mundial do Comércio da década de 90. É preciso estabelecer regras que protejam os provedores de responsabilidades. Isso não quer dizer que os moldes do DMCA sejam os melhores, mas ao menos eles estão claros aos usuários.

Com tantas restrições ao uso da informação na Rede, ainda é possível pensar em uma futura internet como território democrático para distribuição de conhecimento?

Enquanto a indústria se fechar cada vez mais em formatos e restrição de conteúdo, sempre responsabilizando tecnologia por seu uso, o prejuízo coletivo será enorme. Mas há modelos que podem ser aplicados, como a criação de um imposto para a circulação de conteúdo, desenvolvido por William Fisher, de Harvard, que através de uma taxa liberaria o acesso irrestrito aos bens da Rede, remunerando artistas proporcionalmente a sua popularidade. E o Creative Commons que dá estatuto político para as cooperativas culturais. As licenças deslocam o bem cultural da posição acessória e são um paliativo enquanto os caminhos culturais não se descentralizam.

JORNAL DO BRASIL | INTERNET | 22/08/2005


Fonte: Jornal do Brasil


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