*Por Fabricio Solagna e Luis Felipe Rosado Murillo

A atenção dos cientistas tem se voltado cada vez mais para questões relacionadas aos direitos de propriedade intelectual. Como reflexo do fenômeno de sua expansão e de sua presença na vida social, é crescente a preocupação dos pesquisadores acerca dos procedimentos de registro de patentes e com as formas de proteção dos produtos de pesquisas acadêmicas. No domínio da ciência da computação, em especial, o chamado “movimento de software livre” surgiu como uma alternativa ao regime de propriedade intelectual de forma bastante inovadora.

A origem da proposta de software livre remonta ao contexto de pesquisa e desenvolvimento de centros universitários de grande prestígio dos Estados Unidos. No famoso laboratório de Inteligência Artificial do Instituto de Tecnologia de Massachussets, um pesquisador bastante peculiar, físico de formação, iniciou nos anos 1970 uma verdadeira cruzada contra os acordos de sigilo assinados por seus colegas com as nascentes empresas de software. A mensagem do criador da proposta de software livre, Richard Stallman, na ocasião, era bastante clara: o que os seus colegas de laboratório estavam fazendo consistia, em última instância, na recusa em compartilhar o conhecimento, implicando em uma ameaça ao avanço das pesquisas. Stallman denunciava, na época, o que acabou por se naturalizar entre nós hoje em dia, a saber, a apropriação individual ou empresarial de porções significativas do conhecimento disponível para os pesquisadores de áreas afins.

O surgimento do software livre respondia, portanto, de forma crítica ao avanço do regime de propriedade intelectual no domínio da informática. Em grande medida, ele procurou refrear a apropriação do conhecimento que esteve historicamente interligada ao processo de constituição de grandes corporações de software. Com uma mensagem profundamente moral, Richard Stallman convocava os desenvolvedores de software a compartilharem seus programas, o que viria a constituir em nossos dias uma economia de compartilhamento de escala mundial, orientada pela busca no aprimoramento individual dos desenvolvedores, das comunidades de desenvolvimento e das peças de software.

No que diz respeito aos direitos de propriedade intelectual, o fundador e porta-voz da Free Software Foundation, Richard Stallman, propõe a sua negação e a mudança de foco no que diz respeito à propriedade de uma peça de software – protegida pela lei de copyright nos Estados Unidos e pela lei de direitos autorais no Brasil. A rejeição da “propriedade intelectual” é sustentada através do argumento de que se trata de oxímoro oportunista, reunindo sob a mesma rubrica dois termos que não podem se combinar a não ser com a finalidade, inescusável, segundo Stallman, de garantir monopólios sobre bens não-rivais – por exemplo, idéias, conceitos e instruções que compõem um software.

A solução promovida por Stallman foi criar uma licença de software que invertesse os termos do copyright, de forma que fosse autorizada a exploração pública dos softwares. Dessa forma, Stallman criava as condições para que os softwares passassem do controle privado para a gestão coletiva por parte de uma comunidade de programadores, a qual, por sua vez, seria responsável por trabalhar a peça de software com vistas ao aprimoramento e o compartilhamento de seus benefícios. A economia de software livre, portanto, foi constituída com base na licença de software livre GPL (licença pública geral), popularmente conhecida como copyleft, cujos termos estabelecem que o software deve ser livre e aberto para o estudo, modificação, compartilhamento, desde que o resultado do trabalho derivado carregue consigo as mesmas liberdades e a mesma abertura.

O copyleft é o dispositivo que assegura um domínio de liberdade de software para a circulação, sob a obrigatoriedade do compartilhamento. A razão de ser de tal instrumento legal está intimamente implicada na subordinação da tecnologia aos interesses coletivos.

Historicamente, o regime de propriedade intelectual percorreu um caminho inverso ao da proposta de software livre, indo na direção do aumento das restrições e promovendo uma campanha sistemática de orientação para o respeito às suas prerrogativas e, em última medida, altas sanções e medidas punitivas àqueles que preferirem não seguir suas determinações hegemônicas. Ao mesmo tempo, a capacidade de produção colaborativa e o desenvolvimento de um ambiente propício ao compartilhamento de bens imateriais marcou a tônica da era das redes.

A radicalização da propriedade intelectual foi acompanhada pela estratégia de negócio do campo ao qual o software livre se opõe, convencionado de software proprietário. Esse modelo estabeleceu uma lógica de utilização da tecnologia baseada em segredo e reserva de mercado. Segredo, por estabelecer uma relação unidirecional com os utilizadores do software, a partir das licenças de uso das ferramentas, sem possibilidade de acesso aos seus construtos originais. Reserva de mercado, pois tem se utilizado de instrumentos legais, como patentes, para estabelecer áreas restritas a partir de uma descrição jurídica aplicada a um campo técnico.

O software livre é muitas vezes descrito como um hack jurídico, pois alicerçou suas liberdades nas possibilidades de proteção estabelecidas pelo campo jurídico do direito autoral, subvencionando, assim, as restrições advindas da propriedade intelectual. Estaria, portanto, o software livre, constituindo um caminho seguro, dotado de suas liberdades irrefutáveis.

Porém, algumas estratégias corporativas têm demonstrado que esta fronteira tende a ser transposta sempre que interesses comerciais estejam em jogo. Uma delas pode ser descrita no chamado DRM (digital right management ou gestão de direitos digitais).

O DRM se constitui de códigos de software inseridos em dispositivos físicos (como DVDs, CDs, câmeras) ou mesmo em conteúdos digitais (músicas em mp3, filmes digitais, arquivos de texto) que determinam a sua forma de utilização. São limitações criadas à revelia, a pretexto de proteção de direitos autorais que podem, por exemplo, fazer com que uma música seja ouvida apenas algumas vezes no computador, ou que um texto possa ser lido, mas não impresso.

Produto técnico emergido em meio a um turbilhão de legislações de “combate à pirataria”, tem sido largamente utilizado pela indústria como forma de assegurar a utilização escassa de bens imateriais. Isso se traduz em diversas formas que as pessoas podem se relacionar com produtos tecnológicos e mesmo produções artísticas circulantes dentro e fora da rede. A possibilidade de compartilhar um filme, uma música ou um software é tratada da mesma forma, sob o escopo da propriedade intelectual.

Essa é a grande contradição colocada pela propriedade intelectual: tratar bens imateriais e intangíveis, como software e conteúdos digitais, no mesmo escopo dos bens materiais, os quais são suscetíveis à rivalidade de sua utilização; tentar regular algo inerente às redes digitais, a cópia, enquadrando como algo pernicioso e pouco relevante ao desenvolvimento tecnológico.

O software livre mostrou o caminho da inversão e subversão dos direitos em benefício da livre circulação de bens imateriais. Pode-se afirmar que serviu de alavanca a diversos outros movimentos que discutem o custo social da chamada propriedade intelectual forte, seja no campo do direito autoral, seja na área dos fármacos ou de cultivares.

Além disso, demonstrou que as liberdades, em um mundo hiperconectado e condicionado à instantaneidade das redes digitais, pode se utilizar da capacidade criativa de coletividades em detrimento de restrições artificiais, sustentada muito mais pela norma do que pela técnica.

Fabricio Solagna é membro da Associação Software Livre e licenciado em ciências sociais. Luis Felipe Rosado Murillo é doutorando em antropologia e coordenador da TV Software Livre.

Artigo publicado na Revista Com Ciência.