Fonte:
André Borges
Apropriação de identidades e direitos autorais, roubos de informações, normas de comércio eletrônico, invasões de privacidade, pirataria de software, discussões sobre patentes e regulamentação do ciberspaço. Na última década, as tábuas sagradas do Direito têm vibrado diante das novas situações trazidas pelas tecnologias da informação.
Foi para jogar um pouco mais de luz sobre esses assuntos que, no final de maio, centenas de advogados, professores de Direito e especialistas de todo o mundo se reuniram em Turim, Itália, durante encontro promovido pela Berkman Center for Internet & Society, entidade vinculada à Faculdade de Direito de Harvard (EUA), em conjunto com a Universidade e de Turim.
Entre participantes de países como Espanha, Estados Unidos, Inglaterra, Suíça e Ucrânia estava o brasileiro Márcio Cots, advogado especializado em direito no meio eletrônico, convidado pela Harvard Law School. Em entrevista ao COMPUTERWORLD, Cots, que também é professor da FIAP, fala sobre os assuntos que têm tirado o sono de juristas de todo o planeta e das adequações que o Direito sofre e sofrerá frente às novas tecnologias.
COMPUTERWORLD - Como especialistas em Direito estão enxergando o Direito frente aos novos desafios impostos pela internet?
Márcio Cots - Temos inicialmente duas realidades: uma é a dos desafios que temos que enfrentar hoje em dia; a outra é como vamos nos preparar para a realidade futura. O que o mundo discute hoje são os meios de tratar essas questões de internet juridicamente e o que seria o mais ideal para tratar essas questões no futuro.
CW - E, após o encontro em Turim, se chegou a algum consenso?
Cots - Não foi elaborado nenhum tratado, mas sim um grande debate sobre vários temas. O que ficou muito claro é uma forte oposição de idéias quanto a assuntos como direitos autorais. O pessoal de Harvard tem uma imagem mais liberal, mais solta sobre esse assunto. Já o pessoal da Europa, ligado a um escritório de propriedade intelectual que é o braço da ONU, o WIPO (World Intelectual Property Organization), acredita que é preciso policiar mais essas questões.
CW - Mas isso não é paradoxal com a atual realidade de mercado, muitas vezes dominado por companhias norte-americanas?
Cots - Bem observado. Mas o que o pessoal de Harvard tem falado bastante é de uma cultura livre. Hoje você tem uma legislação de direitos autorais, por exemplo, em o autor é que manda, só ele tem poder sobre sua obra. O que alguns especialistas de Harvard defendem é que esse autor, em alguns casos, possa determinar, de antemão, algumas coisas que o usuário pode ou não fazer a com sua obra. É o que estão chamando de creative commons (identificado pela sigla CC). Com isso, é possível preservar uma das principais características da internet, que é a troca de informações.
CW - A legislação atual está pronta para o crime eletrônico?
Cots - Eu diria que para 95% dos crimes cometidos pela internet já há tratamento na lei atual. A internet é só um meio para se praticar um crime. Quanto à legislação no Brasil, eu diria que estamos atrasados em alguns temas.
CW - Que temas, por exemplo?
Cots - Hoje temos uma discussão sobre desvio de dinheiro na rede, se isso seria qualificado como crime de furto ou de estelionato. Um hacker tanto pode criar uma página fictícia, enganar o usuário e obter informações; como ele pode entrar no sistema do banco e subtrair dinheiro. Isso é algo que juízes ainda entendem de forma diferente, é uma discussão que ainda existe.
CW - O Brasil está preparado lidar com o crime eletrônico?
Cots - Muitas vezes, falta conhecimento tanto de juízes como de advogados. Há sentenças com absurdos técnicos. Em uma delas o advogado queria identificar quem foi a pessoa que prejudicou seu cliente. Mas ele simplesmente não sabia fazer o pedido exato para que juiz pudesse solicitar as informações para o provedor.
Por outro lado há sentenças de juizes extremamente especializados, que oferecem informações técnicas. Acho que, para resolver esse tipo de problema, os cursos de graduação precisam incluir em seus currículos essa realidade. O judiciário tem que começar a se especializar.
CW - As punições de crimes eletrônicos virão por novas leis ou adequações da legislação atual?
Cots - O pessoal de Harvard fez uma colocação interessante sobre isso durante o encontro. Eles acreditam que haverá um conjunto de regulamentações. As pessoas estão acostumadas a conviver com a idéia de que toda regulamentação vem por meio de lei, e é claro que ela irá auxiliar nisso.
Mas outra forma de regulamentação virá pela área de tecnologia. Isso já começou a acontecer. Até um tempo atrás, quando você entrava na internet, tinha seu número de acesso IP registrado. Mas quando você mandava uma mensagem para alguém, o que essa pessoa recebia era o IP do seu provedor. Para pedir a sua identificação era preciso ir até o provedor. Hoje mudaram essa sistemática. Os dois IPs podem chegar na máquina do destinatário da mensagem, e você não precisou de uma lei para isso.
Além de leis e regulamentação do próprio mercado, também pode existir regulamentação que venha do próprio usuário. Em sites de leilões online, por exemplo, o cliente pode dar uma nota para o vendedor, uma pontuação para a empresa, que acaba funcionando como uma forma de regulamentação. Por isso estamos falando de um conjunto de ações.
CW - O provedor sempre foi um entrave para investigações. Então isso mudou?
Cots - Se o advogado simplesmente for lá bater na porta, é evidente que não vai conseguir nada. Já é bem diferente a situação em que o juiz manda uma ordem judicial. Advogados que já conhecem essa problemática entram com uma medida judicial chamada produção antecipada de provas. Antes de entrar com o processo, ele diz para o juiz que precisa de mais subsídios, algo que não pode cobrar sozinho. Se o juiz entender o seu pedido como pertinente, o provedor tem que atender a sua requisição. Acontece que simplesmente pedir cadastro de e-mail não adianta nada. Esse cadastro pode ser falso, é preciso saber quem acessou, de que local, de que máquina.
CW - O senhor acredita que as regulamentações e leis darão conta do problema da pirataria?
Cots - Não sozinhas. Como em outros casos, muita coisa pode ser feita por meio da própria tecnologia. Em Harvard, fala-se muito que "code is law" (o código é a lei), o que sugere que a programação, ao padronizar um mecanismo de funcionamento, também passa a ser uma forma de regulamentação.
CW - Muitas campanhas focam o aspecto da punição como forma de inibir a pirataria de software.
Cots - Campanhas, muitas vezes, com informações erradas sob o aspecto jurídico. Um exemplo clássico: se você for pego com software pirata, poderá ser penalizado com o pagamento de três mil vezes o valor do software original.
CW - Não é verdade?
Cots - Não é verdade. A legislação diz que essa multa pode ser aplicada para a pessoa que produz software pirata, não para aquela que é usuária deste software. É uma multa para o pirata em si, embora essas campanhas queiram atingir o usuário em si.
CW - Qual é a multa adequada para esse usuário?
Cots - Neste caso, não tem nada específico na legislação atual. O que o judiciário vem entendendo é que nesses casos a pessoa paga o valor do software original ou, quando não, duas vezes o valor da licença.
CW - Este poderia ser mais um buraco na legislação?
Cots - Se você entender que o conveniente seja aumentar o valor da multa para a pessoa não utilizar o software pirata, talvez. Mas se a informação que já chega para eles é que a multa é de três mil vezes mais e eles ainda continuam usando...
CW - Sobre a questão de privacidade na internet, qual a sua avaliação do cenário atual?
Cots - É um assunto de muita discussão. Recentemente uma sentença do Tribunal Superior do Trabalho entendeu que as empresas podem monitorar os e-mails de seus funcionários. Em um caso recente do banco HSBC, o profissional foi demitido por justa causa porque ficava trocando imagens pornográficas usando o e-mail da empresa.
O funcionário entrou (na Justiça) tentando quebrar essa justa causa, alegando que tinha direito à privacidade na troca de informações porque isso é algo previsto na Constituição. Sem dúvida, está previsto. Só que o tribunal entendeu que, assim como ele tem direito à privacidade, a empresa também tem algo previsto na Constituição, no mesmo artigo 5º - que trata dos direitos e garantias fundamentais do cidadão - que é o direito à propriedade.
O e-mail foi entendido como um instrumento de trabalho. Acredito que as empresas devam colocar de forma clara e explícita que estão monitorando suas ferramentas. Não se pode criar uma expectativa de privacidade no usuário.
CW - A partir dessa decisão, o senhor acredita que empresas em geral passarão a monitorar seus funcionários?
Cots - Eu acredito que é o que vai ocorrer. Hoje em dia muitas empresas não adotam esse sistema por medo de sofrer alguma ação por danos morais. Mas, há algum tempo, a Justiça do Trabalho passou a ter capacidade para julgar isso. Sei que há advogados indignados com a decisão, alegando que é total invasão de privacidade. Mas também há outros que concordam com a decisão do tribunal.
CW - O caso já foi finalizado?
Cots - Não, ainda cabe recurso. Como é matéria constitucional, pode chegar até Supremo Tribunal Federal, o que seria algo até interessante para chamar a atenção para o assunto.
CW - Qual é a sua opinião sobre o caso?
Cots - O tribunal está correto. Se a empresa, como estão dizendo, realmente tinha deixado claro que o e-mail corporativo era monitorado, a postura está correta.
CW - E quanto à restrição de navegação na internet. O que o senhor pensa sobre isso?
Cots - A postura tem que ser a mesma. É preciso falar que há conteúdos que não podem ser acessados, monitorar a navegação do funcionário. Isso porque, além de assuntos de privacidade e direito à propriedade, tem a questão da responsabilidade que a empresa tem pela atitude praticada pelos seus funcionários.
É o que chamamos de "culpa in vigilando" e "culpa em eligendo". Quer dizer, eu tenho culpa sobre aquele que eu tenho que vigiar, sobre aquele que eu elegi como sendo meu representante, meu funcionário. Isso significa que, se um funcionário pratica um crime usando um e-mail corporativo, o empresário terá que prestar depoimento, terá que explicar como é que o e-mail da empresa está envolvido com tal situação.
Além disso, tem a questão da preservação da imagem da empresa. Se um funcionário envia uma imagem pornográfica com o e-mail jose@hsbc etc, como é que fica a imagem da empresa nessa situação? Ela tem direito de fiscalizar.
CW - O senhor não acha possível que haja uma flexibilidade quanto à restrição de navegação na rede?
Cots - Se a empresa entender que sim... O que eu acho é que ela tem que deixar tudo muito claro para o funcionário, isso precisa ser regulamentado, documentado. Tudo ainda está muito solto.