A lista de discussão do Instituto Brasileiro de Direito e Política de Informática (IBDI) suscitou, em outubro de 2012, um debate sobre licenciamento de software, a partir de questões relacionadas ao reuso de programas distribuídos sob licenças livres em obras derivadas. O presente artigo torna público algumas considerações levantadas pelo autor naquele debate, restritas ao que supõe não ferir o caráter privado daquela lista, expresso na sua modalidade de acesso.

O que é copyleft

Diante de algumas dúvidas ali manifestas, procurei esclarecer que algumas bibliotecas de software – pacotes de programas de autoria de terceiros normalmente distribuídos em suítes para desenvolvimento de software – são distribuídas sob licenças contendo cláusulas que permitem seu reuso, isto é, o uso da biblioteca como componente de um novo software, por parte de qualquer desenvolvedor, mediante certas condições que incidem sobre a obra derivada, ou seja, sobre qualquer novo software que as venha reusar, conforme técnicas de composição indicadas nessas cláusulas.

Quem assim faz uso dessas bibliotecas só pode fazê-lo legalmente respeitando tais condições, pois a licença das bibliotecas caracteriza essa forma de uso como obra derivada (i.e., sua licença enquadra o novo software nessas cláusulas). Quando tais condições fixam a exigência de que a obra derivada só possa ser distribuída sob licença que não restrinja os direitos concedidos na licença da obra reusada, a cláusula que as impõe é dita "copyleft" (assim batizada por quem a inventou). A desobediência dessa cláusula, por sua vez, caracteriza um tal reuso da biblioteca como plágio.

Uma licença que contém cláusula copyleft é abreviadamente chamada de "licença copyleft". Quando o desenvolvimento de um software inclui reuso de biblioteca sob licença copyleft, e o titular desse software o disponibiliza – como no caso em debate – sem nenhuma licença específica, e portanto, sob o regime de direitos de uso cobertos pela lei do Direito Autoral ou afim para casos em que não haja licença especifica, esse autor estaria disponibilizando seu novo software em violação da cláusula copyleft daquela licença, já que tal regime restringe os direitos nelas concedidos.

Software proprietário e entorpecentes

Depois, respondendo a questionamentos referentes a alternativas, sobre possíveis semelhanças entre software proprietário e entorpecentes, parodiei um conselheiro da Fundação Software Livre América Latina enumerando algumas. O regime de licenciamento de software proprietário, baseado em licenças de uso ainda mais restritivas do que exigiriam as leis de Direito Autoral e afins na ausência de licença específica, apresenta, em seus efeitos semiológicos, várias semelhanças com entorpecentes em seus efeitos fisio-psico-sociológicos.

1- Cria dependência do usuário a padrões fechados e/ou legalmente restritivos: os acervos que um tal software produz para seu usuário codificam dados em formatos opacos ou proprietários, tecnica e economicamente difíceis de interoperarem com outros softwares de função equivalente.

2- Cria barreiras para a saída desta dependência.
  • O custo para desenvolvedores alternativos produzirem – e manterem atualizados – outro software capaz de interoperar com tais acervos, através de várias versões e com acervos de outros que seguem usando o software proprietário, o qual altera seus formatos ao longo das várias versões para quebrar essa interoperabiliade, torna as alternativas normalmente anticompetitivas.
  • O custo de conversão desses acervos, produzidos por software proprietário – ao longo de várias versões –, para acervos de padrão aberto, codificados em formatos de acesso livre e legalmente desimpedidos, é via de regra inviabilizado: quer pelo custo de licenciamento sobre direitos imateriais (patentes) incidentes sobre formatos proprietários (p.Ex, Autocad), quer por complexidade artificalmente obscura em formatos fechados (ex. MS Office)
3- Cria racionalizações psicológicas para manutenção dessa dependência: Foco em padrões "de fato", na impossibilidade de se prever o custo futuro para superação das barreiras de saida, ou para manter-se limpo de possíveis contaminação por restrições proprietárias em padrões hoje abertos. (Vide "Sindrome de Estocolmo Digital")

4- Exige confiança cega. Paga-se pelo uso sem o direito de reclamar a respeito do conteúdo, ou de como o "produto" vai controlar ou afetar o funcionamento de sua máquina. (sem o direito de conhece-lo para adaptá-lo a suas necessidades, assim subjugadas às necessidades do interesse do fornecedor) 


Então, alguém sintetizou que ali no debate alguns estavam apresentando certa tendência à "sacralização" das licenças de software, enquanto o que o Direito exige para configurar uma tal licença "é só um elemento: consentimento.  Mais nada." E como "se politiza e ideologiciza o efeito de certos ajustes mais elaborados que incluem o consentimento", alguns no debate pareciam "afetados por um fundamentalismo textual."

Consentimento

Licenças de uso e licença autoral (dispositivos que cedem direito de reuso em obra derivada, por exemplo via cláusula copyleft) seriam, pura e simplesmente, formas de consentimento. Opinou-se então que em discussões desta natureza antes se veja o consentimento; o resto seria prova, que no sistema jurídico brasileiro "essencialmente passa pelo livre convencimento, ou seja, sem se ater à liturgia."

Aí, finalmente se admitiu a dimensão político-ideológica do tema ali tratado. Preferi ler, naquela opinião, antes e além de uma jurisdouta síntese da essência de debates sobre "software livre versus software proprietário", um roteiro entre marcos da história. Politiza-se e ideologiciza-se o efeito de certos ajustes mais elaborados que incluem o consentimento exigido pelo Direito, certamente, mas por que?  Qual a razão, a origem disso?

Veja-se além do debate naquela lista. Isso começa em outro debate. Num diálogo entre Platão e Trasímaco, na "República". Sobre consentimento para jurisdicionalidade na polis (cidade-Estado), quando o uso pioneiro de algo seminal que depois iria evoluir ao software – a escrita fonética (alfabética) – se disseminava.

Também no diálogo platônico, a questão seguinte levantada em tal síntese já se insinuava: Poderia a escrita (de leis, de licenças ou do que seja), como diz o filósofo da linguagem Ludwig Wittgenstein, enfeitiçar nossa inteligência, a ponto de sermos afetados por fundamentalismos textualizados? Veja-se além daquele diálogo platônico, sobre a natureza da justiça.

Fundamentalismo

Do iluminismo humanista, que fundou o Estado moderno, herdamos um caso exemplar de fundamentalismo textual, contratualista, no pioneiro Código Civil de 1804 (Napoleônico). Sucedâneos vêm então se refinando, no cadinho neoliberal-positivista hoje vivido, até o regime atual das patentes de software. Ativistas do Software Livre têm portanto importante companhia.
.
"Sacralizado" quer dizer separado. Software é um bem simbólico antirrival, que pode ser fungível. Desses, é certamente o único cujo meio de produção tornou-se, quase completamente, o próprio. Separado ou separável, também suas licenças, nesse implacável cadinho, devido a ambos (cadinho e software) serem assim. Por que não?

Aí põe-se a questão da natureza do virtual, sua "obra". Não canso de me assombrar, e/ou de me divertir, com as espertezas dos que se vêem pregando peças, munidos de analogias mercadeiras que equiparam software a bem material rival, até mesmo em quem entende ou reverencia sua tipologia ímpar.

Algumas dessas peças são muito úteis. Os que primeiro as encaixaram em seus negócios, produzindo a "solução" proprietária, realizaram a mais rápida acumulação pecuniária da historia do capitalismo. Formas criativas de des-entendendimento, de dissonânica cognitiva, podem dar prodigiosa matéria prima nesse cadinho. Quem saberia até onde, ou até o quê?

Virtual ou irreal?

Muniz Sodré credita ao filósofo Gilles Deleuze a conclusão de que o virtual não é antônimo de real, mas é a indistinguibilidade entre o real e o irreal. Assim, um mesmo argumento – como o que compara uso de software proprietário com o de entorpecentes –, "usado para criticar um modelo [de licenciamento] e elogiar o inverso [???] ao mesmo tempo", daria ainda mais leituras, além de sua própria polissemia.

Se, numa leitura, tal polissemia pode indicar (como ali argumentado) puerilidade na base dos conceitos que municiam a defesa dos argumentos, noutra pode indicar sagacidade na sacada de Deleuze. "O melhor" (modelo de licenciamento) continua relativo, ao encontro entre observador e observado, com ou sem Deleuze mas com sua sacada sobre o virtual algo muda, em foco e nitidez a maior prazo.

A "ovelhização" de usuários de TIC – como foi ali batizado o sucesso do modelo inaugurado pela Apple, com lojas virtuais exclusivas para os softwares que podem rodar em produtos que ela fabrica – reafirma o elemento básico do consentimento (ou melhor, das formas – e lados – do consentimento) e indica o tipo de jogo. O nome dele é mesmo controle, o qual, no virtual – conforme Deleuze – seria subreptício: veja-se como no virtual "desliza" o significado original do radical grego "cyber." (cada um é cego à sua própria ideologia como tal)

Esse controle se exerce pelo encontro daquelas espertezas com fetichismos e urgências tecnicistas, mantidas por consumismo induzido por mitos pós-modernos, onde o próprio conceito de identidade ("ovelha" e "pastor", por exemplo) virtualmente se esvanece. Junto com outros conceitos, que dele emergem (eticidade, civilidade, etc). Qual é o foro adequado para se julgar puerilismo nisso?

Liturgias

A justiça, para Trasímaco, é liturgia do poder; por isso, ao final não admite outras. Convencimento livre, justiça humana, poder terreno. Do humanismo utilitarista, ideologia que está fundando o Estado pós-moderno, vamos herdar os sucedâneos dessas espertezas e encontros consentidos; junto com seu relativismo moral. E então, as consequências.

Naquele debate fomos também lembrados, como dizia Keynes, que a longo prazo estaremos todos mortos; mas se quisermos antes antever tais consequências, a história só não basta. E Deleuze só dá pistas tênues para tal ocasião. Porém, tomando a linguagem mística de metáforas oferecidas naquele debate como consentimento tácito para nela opinar, com ela encerro.

A justiça que se atém à liturgia moral é a divina. Para tal ocasião ela prescreve a "vinda do iníquo, com todo o poder e sinais e prodígios de mentira, e com todo o engano da injustiça para os que perecem, porque não receberam o amor da verdade." Aos que perecem, Deus "enviará a operação do erro, para que creiam a mentira"; para que sejam julgados os que "antes tiveram prazer na iniqüidade." (2 Tessalonicenses 2:8-12)

Nela, prazer na iniquidade é forma condenável de puerilismo, e amor à verdade, condição absolutória. Jesus não usou palavras para responder a Pilatos o que é a verdade: Deus a revela pela sua, e nele. Palavra que nos é servida desde o albor da escrita fonética, que não muda, e que tem gosto de promessa de vida eterna. Fundamental? Cada qual decida se a acolhe em fé, e a consente para reuso no seu coração, ou se busca caminhos "mais produtivos".