Relato de Priscila Gonsales, publicado originalmente no site "Porvir - o futuro se aprende". 

Com o objetivo claro de reduzir a desigualdade digital da população, o Uruguai foi o primeiro país da América Latina a entregar computadores portáteis para cada um dos 300 mil alunos de ensino fundamental e médio das 2,3 mil escolas públicas de seu território. Batizado de Plano Ceibal, a iniciativa surgiu em 2007, inspirada na proposta da ONG One Laptop per Child (Um Computador por Aluno), fundada pelo pesquisador do MIT Nicholas Negroponte. Todas as escolas têm conexão à internet , as máquinas são substituídas a cada quatro anos e o país vem aumentando a quantidade de centros comunitários de acesso ou wifi aberto.

Antes do Ceibal, somente 5% das famílias de baixa renda tinham acesso a computador e internet. Seis anos depois, esse índice subiu para 80%, praticamente o mesmo encontrado nas famílias mais ricas. Estudo das Nações Unidas aponta o vizinho sul-americano como o primeiro no ranking de inclusão digital e transparência governamental (a Lei de Acesso à Informação Pública foi promulgada em 2008). É também o mais bem posicionado do continente no Índice de Desenvolvimento de Tecnologias da Informação e Comunicação e o que oferece maior velocidade de banda larga por uma tarifa mais baixa.

Entre os dias 17e 19 de outubro de 2013, o Ministério da Educação uruguaio realizou em Montevidéu a segunda edição do Expo Aprende Ceibal, um encontro para compartilhar experiências educativas e debater os principais temas que desafiam o trabalho pedagógico com tecnologias digitais. Convidada como especialista em educação e cultura digital, já conhecia bem a iniciativa, mas mesmo assim me surpreendi com a qualidade do envolvimento de professores e alunos ali presentes, que não vieram só para ouvir, mas principalmente, para apresentar suas práticas e debater sobre elas.

No pátio central do belíssimo auditório Sodre, centenas de pôsteres de experiências com seus respectivos autores – professores e alunos – davam vida a um espaço que tradicionalmente nos congressos educacionais é ocupado por grandes estandes de empresas de tecnologia e companhias editoriais com seus produtos à venda.

Em sua fala, ao final do primeiro dia do evento, Miguel Brecher, presidente do Ceibal, foi breve e conciso: “A tecnologia mudou muito nossa vida, mas não mudou a educação. A tecnologia chegou na educação para atender o que os vendedores da tecnologia queriam e não o que nós, educadores, queríamos”. E completou: “O desafio não só do Uruguai, mas de todos os países do mundo é adaptar a tecnologia à educação – e educação não significa só absorver conteúdos, mas educar para a vida, para compartilhar nosso conhecimento com toda a sociedade”.

A concepção pedagógica de uso da tecnologia que sustenta o Ceibal é ousada e totalmente distante da visão tradicional. Não se trata de substituir os materiais analógicos pelos dispositivos digitais para favorecer a transmissão de conteúdos curriculares e, com isso, subir no ranking dos exames educacionais oficiais. O que se quer é introduzir a cultura digital no ambiente educativo e, dessa forma, promover a criatividade, a autonomia e a autoria dos envolvidos, estimulando um processo de aprendizagem motivador e de fato permanente.

“Ao criar um joguinho no Scratch e desvendar todos os códigos dessa linguagem de programação, os alunos exercitaram cálculos. Ao lançar o jogo no blog da escola, tiveram que redigir o tutorial de forma clara e compreensível, aprendendo a correta conjugação verbal”, contou orgulhosa uma professora de ensino fundamental sobre seu projeto de criação de games com os alunos. Os resultados desse processo ainda não aparecem nas avaliações oficiais da educação do país, que continuam registrando estagnação na aprendizagem de leitura e matemática.

“Quando pensamos o Ceibal, não esperávamos melhorias em matemática e língua materna. Sabemos que isso é consequência de um trabalho a médio e longo prazo. O que fizemos foi criar um projeto de país focado na inclusão social pela via da educação”, ressaltou Miguel Brechner em São Paulo, durante evento organizado pelo Instituto Educadigital e o Comitê Gestor da Internet. Brecher aproveitou a ocasião para contar sobre as novidades que estão sendo implementadas: videoconferências para ampliar o alcance do ensino de língua estrangeira, das quais participaram 1.000 grupos de 196 centros educativos só neste ano, e uma plataforma adaptativa para matemática que, em cinco meses, já conta com 19 mil usuários e 1 milhão de exercícios resolvidos.

Nos itens abaixo abaixo, pontuo mais alguns aspectos desse ecossistema educativo uruguaio chamado Plano Ceibal que podem servir de inspiração para políticas públicas e demais iniciativas educativas brasileiras:

Independência e autonomia administrativa

O Plano Ceibal é um órgão autônomo em relação ao Ministério da Educação. Criado via decreto presidencial em 2007, tem uma governança formada por uma equipe de gestão executiva e uma comissão consultiva com representantes de órgãos públicos, como os Conselhos de Educação. O financiamento de todas as ações é via recursos públicos, mas a equipe gestora tem total autonomia para contratar funcionários, fornecedores de serviço, assessores, comprar equipamentos e materiais educacionais (incluindo os direitos autorais para poder usar como quiser), dentre outras ações. A constância do programa de educação, independentemente dos mandatários presidenciais, é um dos principais destaques. Pesquisa nacional de 2010 mostrou que 94% da população é favorável à iniciativa.

Valorização da autoria de alunos e professores

Alunos e professores são sempre considerados protagonistas no processo de ensino e de aprendizagem. Há um currículo base, mas os materiais didáticos não são inspecionados pelo governo e as estratégias e metodologias pedagógicas ficam a cargo dos docentes, que são constantemente estimulados a criar e compartilhar recursos educativos e projetos de maneira aberta e on-line. Um vídeo explica como produzir Recursos Educacionais Abertos. Já os alunos são fortemente incentivados a aprender a programar, especialmente com o Scratch, uma plataforma criada no MIT que permite criar jogos, animações e histórias interativas. Com o uso da ferramenta, os conteúdos curriculares são trabalhados de forma transversal e pela metodologia de projetos.  Estudantes também participam do Design for Change, que utiliza a abordagem do Design Thinking para planejar eles mesmos a solução de problemas reais do espaço escolar, como melhoria do serviço da cantina, combate ao buylling, dentre outros.

Estímulo à carreira docente e sistematização de experiências

Martín Rebour, coordenador de formação de professores do Ceibal, contou que a cada ano, 10 mil educadores participam das ações de formação realizadas pelo programa, via cursos presenciais ou virtuais e oficinas. Para apoiar o trabalho pedagógico de uso das “ceibalitas”, como são carinhosamente chamados os computadores, nas escolas, existem cursos específicos organizados pelos Conselhos de Educação: Maestro de Apoio Ceibal (MAC), Maestro Dinamizador e Maestro Conteudista. Na plataforma CREA, vários cursos virtuais são oferecidos ao longo do ano .

As formações são todas por adesão e não remuneradas. Os ganhos salariais vêm na sequência, assim que o docente assumir nova função. E notícias recentes mostram que o incremento da remuneração docente tem sido uma tendência da política pública.

Experiências pedagógicas são constantemente sistematizadas e compartilhadas como em Sembrando, Livro Azul e outras publicações. E a formação inicial docente também faz parte do programa. Alguns cursos estimulam a criação de objetos de aprendizagem pelos estudantes universitários para uso das escolas do Ceibal.

Envolvimento da família e da comunidade

Ao levar para casa as “ceibalitas”, crianças e adolescentes estimulam o envolvimento de suas famílias na relação com a escola, pois eles são os responsáveis pelo cuidado dos equipamentos. Estudo realizado pela Universidade Autônoma do México e Universidade Católica do Uruguai mostrou que as famílias demonstram confiança e certeza da importância do computador para melhorar a educação de seus filhos, especialmente por abrir oportunidades de trabalho futuro. Mas que, no início, estranhavam muito o frequente uso dos jogos, reproduzindo a tradicional visão de que jogo não combina com educação escolar. Porém, com o tempo e interação com seus filhos dentro de casa com a ceibalita, vão percebendo o valor dos jogos para melhorar a aprendizagem. Além disso, também usam o computador para atividades familiares, como tirar fotos, encontrar informações sobre qualquer tema ou conversar com um parente distante.

Além das famílias, foi articulado um vasto grupo de voluntários para apoio às ações e atividades do Ceibal.

Intercâmbio com outros países

Brasil, Costa Rica, Argentina estão entre os países com os quais as escolas uruguaias realizam intercâmbios de projetos. Comunicação via internet, cooperação e até visitas presenciais estão acontecendo, como no caso da Escola Estadual Osvaldo Aranha, de Ijuí/RS, e a Escola República del Paraguay no 94, de Rivera, que estão trocando informações sobre o poeta gaúcho Mario Quintana e o pintor uruguaio Joaquín Torres García. A escola de Ijuí faz parte do recente projeto da Secretaria Estadual de Educação do RS, Província de São Pedro, que equipou com laptops as escolas brasileiras nas cidades de fronteira e simultaneamente formou os professores “para não deixar os estudantes brasileiros dessa região em desvantagem em relação aos colegas uruguaios”, explicou Maria Lúcia Pinto, coordenadora pedagógica do projeto na Secretaria Estadual de Educação do RS, que também participou do ExpoAprende Ceibal.

 

* Priscila Gonsales é Fellow Ashoka, máster em Educação, Família e Tecnologia pela Universidade de Salamanca (Espanha), jornalista especializada em educomunicação, co-fundadora do Instituto Educadigital. Desenvolve projetos e pesquisas em educação na cultura digital desde 2001 e facilita processos formativos envolvendo recursos educacionais abertos e design thinking

Fotos: Presidência UruguayTelecontamisimple