Em um dos raríssimos momentos de sobriedade daquilo que chamam de blogosfera nacional,  Anahuac de Paula Gil publicou em seu blogue um interessante artigo no qual expõe aquilo que muitos usuários de software livre já estavam cansados de engolir calados: o fato de o Ubuntu, a mais popular distribuição de Linux da atualidade, aniquilar a liberdade de software, um dos maiores diferenciais do movimento do software livre.

Em meados da primeira década do século XXI, a FSF e uma série de visionários vislumbraram um futuro onde o Ubuntu se popularizava de tal forma que muitos usariam GNU/Linux sem nem mesmo saber o que era isso. Alertaram a todos sobre os riscos da quantidade e disseminação desqualificada, ou seja, muito Linux e pouco GNU, muito uso e pouco entendimento, muito código e pouca filosofia, muito compartilhamento e pouca liberdade: o triunfo do Open Source sobre o Free Software.

Mal ele publicou uma cópia de seu texto no site BR-Linux (que, de Linux, só tem o nome, pois seu curador é, assumidamente, um usuário dos produtos da Maçã) que uma acirrada discussão com centenas de comentários, foi instaurada.

 Os comentaristas daquele site basicamente tentam, a todo custo, defender o sistema da Canonical através de argumentos falhos. Como se não bastasse o uso indiscriminado da falácia lógica ataque ad hominem contra o autor do texto, os “intelectuais” daquele site caem em dois argumentos típicos:

  • Eu sou livre para escolher usar o que eu quiser;
  • Eu prefiro a situação atual à anterior.

Ambos os argumentos são falhos conforme será explicado a seguir.

Ubuntu e liberdade

Os usuários de Ubuntu que comentam no BR-Linux associam, erroneamente, a ideia de software livre com a liberdade de se usar o que a pessoa bem entender, o que pode ser visto como outro sintoma da “ubuntuzação” do software livre. Cabe relembrar, então, que em meados dos anos 80, a Free Software Foundation definiu um conjunto de quatro liberdades as quais todo software deveria obedecer a fim de ser considerado livre:

  • A liberdade de executar o programa, para qualquer propósito (liberdade 0).
  • A liberdade de estudar como o programa funciona, e adaptá-lo às suas necessidades (liberdade 1). Para tanto, acesso ao código-fonte é um pré-requisito.
  • A liberdade de redistribuir cópias de modo que você possa ajudar ao próximo (liberdade 2).
  • A liberdade de distribuir cópias de suas versões modificadas a outros (liberdade 3). Desta forma, você pode dar a toda comunidade a chance de beneficiar de suas mudanças. Para tanto, acesso ao código-fonte é um pré-requisito.

Dessa forma, se um software falha em cumprir qualquer uma dessas liberdades, ele não pode ser considerado livre. Por exemplo: o plugin do Flash para GNU/Linux pode ser obtido gratuitamente, mas o usuário não tem acesso ao seu código fonte e, muito menos, pode modificá-lo e distribuir as versões por ele modificadas. Por isso, o plugin Flash, apesar de estar disponível gratuitamente, não é software livre.

O erro dos defensores do Ubuntu é atropelar essas quatro liberdades e afirmar que nenhum sistema pode ser livre se o usuário não possuir a liberdade de instalar o que bem entender – independente da licença de uso do que esteja sendo instalado. Richard Stallman deixou essa questão bem clara em uma entrevista à Linux Magazine, ao afirmar que

Liberdade não é liberdade de escolha. Ter a opção de se acorrentar reduz sua liberdade. É simples: engana-se quem identifica liberdade como liberdade de escolha, porque a liberdade de se permitir acorrentar não aumenta a sua liberdade – provavelmente a diminui.

Aplicativo proprietário disponível no software center do Ubuntu.

Loja de aplicativos do Ubuntu oferece programas proprietários para instalação.

Partindo-se desse ponto de vista, vemos que o Ubuntu pode ser facilmente eleito como o maior inimigo de nossa liberdade de software.  Sua central de aplicativos oferece, indiscriminadamente, não apenas plugins, mas também softwares proprietários, à disposição do usuário com apenas poucos cliques.

Além disso, cabe destacar ps serviços completamente dispensáveis que já vem embutidos por padrão na distribuição, como o Ubuntu One – que, apesar de o aplicativo ser livre, acessa serviços proprietários em nuvem – e as polêmicas parcerias comerciais, como aquela que envia, por padrão, os dados do usuário aos servidores da Amazon (mesmo que o usuário afirme que essa opção possa ser desativada, qual a certeza de que a mesma não continua funcionando escondido?).

Como se não bastasse tudo isso, hoje temos um inimigo maior ainda: a nuvem, totalmente apoiada pela Canonical. Afinal, de nada adianta o usuário usar um sistema completamente livre se ele o utiliza para acessar serviços proprietários, como Facebook, Linkedin, Twitter, entre outros. A integração do ambiente Ubuntu com as redes sociais, que rastreiam os hábitos de navegação do usuário, traçam seu perfil e vendem essas informações a terceiros, é mais um soco no estômago da Liberdade de Software.

Assim, vemos que o Ubuntu não é uma distribuição de Linux como as demais, mas uma plataforma de negócios que tem, por objetivo primário, encher os cofres da Canonical às custas da liberdade e da privacidade do usuário.

Da Orkutização à Ubuntuzação

Um forte argumento utilizado na discussão do BR-Linux é que a situação atual do software livre está melhor daquela que existia antes da ascensão do Ubuntu. Esse ponto é amplamente questionável.

Como se não bastasse nossa “blogosfera” tecnológica nacional já estar entupida pelo lixo textual produzido pelos tecnoblogues e meiobites da vida, os sites ditos “especializados” em Linux, excluindo-se aqueles que são voltados a alguma distribuição específica – como o Mageia Brasil ou o Slackware Brasil, por exemplo -, na maioria das vezes assume que o leitor está ou estará usando Ubuntu ou algum de seus derivados para seguir algum tutorial relacionado à instalação de programas ou à resolução de problemas.

Logotipo do Ubuntu com um sinal de proibido

Embora os defensores do sistema da Canonical possam dizer que isso se deve ao mercado e ao fato de a distro ter conseguido se destacar entre as demais, vemos que, aí, está clara a existência da famosa zona de conforto, o que pode – e certamente vai – intimidar os usuários que começaram sua caminhada no mundo livre por outra distro. Se eu tenho um problema no OpenSuse, mas só encontro textos com soluções para ele no Ubuntu, embora saibamos que, tecnicamente, a solução é a mesma, é mais provável que o usuário escolha mudar de distro porque, no Ubuntu, as coisas funcionam e há (supostamente) mais documentação disponível.

Essa situação também faz o mercado de refém. Uma pessoa que se disponha a trabalhar com Linux em uma empresa que usa CentOS poderá argumentar que não se sente a vontade com o sistema. Embora o mais lógico fosse o patrão mandar embora aquele folgado e pegar alguém competente,  a longo prazo isso pode causar uma padronização forçada para o sistema da Canonical no mundo corporativo.

Além do fato de a maioria dos sites “especializados” assumir a onipresença do Ubuntu, temos o agravamento da superficialização do conteúdo. Se nos anos 90 e no início da década passada era comum encontrarmos sites com dicas e tutoriais com conteúdo técnico excelente e bem aprofundado, hoje a maioria dos “conteúdos” se resume a reviews superficiais de aplicativos, em sua maioria gráficos, e, também, de smartphones. A maior prova disso é que o famoso Guia do Hardware, do mestre Carlos Morimoto, referência no período supracitado, hoje, está às traças.

Como se não bastasse tudo isso o Ubuntu contribui para a terrível obsolescência programada através de versões cada vez mais pesadas e de “inovações”, como o ambiente Unity e o Mir, totalmente dispensáveis e que só têm como objetivo centralizar ainda mais o sistema nas mãos da Canonical. Prova disso é esta declaração, postada por um site dedicado ao sistema em uma rede social, a qual induz o leitor a trocar seu equipamento para acompanhar a “evolução” do Ubuntu, igual àquele outro famoso sistema.

Igualmente, o argumento de que, na contemporaneidade aumentou-se a produção do software livre é falho, pois ao menos no Brasil os usuários não possuem conhecimento para tal. No máximo, eles criam um shell script mal-feito seguindo tutoriais da internet mas, na hora de criar algo sério, com algo na linguagem C, padrão no mundo Unix-Like, dão um jeitinho de cair fora.

Conclusão

Hoje, está mais do que claro que o Ubuntu é nocivo à liberdade de software e à nossa privacidade digital. A maioria dos argumentos que visam a defender a plataforma comercial da Canonical não possuem uma forte sustentação e são, em muitos casos, tentativas desesperadas dos usuários do sistema para continuarem em sua zona de conforto.

É lamentável que os preceitos verdadeiros da Liberdade de Software estejam sendo esquecidos, mas isso já era esperado. O problema é que essa situação só tende a piorar.