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Marcada para a próxima semana, a votação da nova lei de telecomunicações dos EUA continua sendo assunto de grande importância. O projeto de lei, já aprovado pelo equivalente à Câmara dos Deputados (House of Representatives) sem uma emenda que garantia a permanência do princípio de neutralidade de rede, tem movimentado diversos ativistas e empresas.
Porém, como afirmou o professor da Universidade de Syracuse Milton Mueller ao Oppi, o fato de os Estados Unidos transformarem sua legislação não significa que o resto do mundo seguirá o mesmo caminho. Para ele, é claro que os EUA têm influência em outros países, mas a forma como cada um regula sua legislação varia em cada local.
Por isso, o Oppi procurou o advogado Omar Kaminski, suplente do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e Coordenador do Grupo de Trabalho de Direito e Tecnologia da Informação (GT-Info) da OAB/PR, para saber se o Brasil em breve pode se defrontar com uma situação similar à norte-americana. A resposta? “As poucas discussões sérias nesse sentido são restritas, e geralmente não alcançam a esfera legislativa nem têm gerado projetos de lei significativos. Prefiro acreditar que nossa pretensa "ingenuidade" nesse campo é benéfica a todos”.
Leia abaixo a entrevista, feita por email.
Oppi - Os EUA estão em meio a uma grande discussão sobre o princípio da "neutralidade da rede". Empresas de telecomunicações e de cabo, maiores fornecedoras de acesso à internet no país, querem ter o direito de cobrar, das empresas de conteúdo, por vias "privilegiadas", o que feriria o princípio de condições iguais de oferecimento de produto. Em última instância, as telecoms poderiam vedar o acesso do público a determinados conteúdos ou torná-los inacessíveis.
A Câmara dos Deputados de lá (House of Representatives) já aprovou uma nova lei de telecomunicações que não prevê o princípio da neutralidade. Quais podem ser as consequências desse ato para a liberdade de expressão e a livre concorrência na internet norte-americana?
Omar Kaminski - Os atentados à neutralidade da rede demonstram que legislar sobre a Internet pode afetá-la direta ou indiretamente. E tal legislação acaba por atingir a arquitetura da rede, que em resumo são os protocolos e as rotas que determinam os caminhos para as informações. A rede é formada por camadas (cf. Lawrence Lessig): a camada intermediária, também chamada de camada lógica ou de código, abaixo dela a camada física (do hardware em geral) e acima, a camada de conteúdo propriamente dito. É sobre esta última camada, a de conteúdo, que a discussão se intensifica. É essa camada, que devia ser "livre" por definição, que acaba atingida por legislações que, ao mesmo tempo que impedem ou autorizam certas condutas, não deixam suficientemente claras as questões de regulamentação, permitindo interpretações amplas ou errôneas.
O chamado Communications Opportunity, Promotion and Enhancement Act (COPE) planeja regular o que um provedor de serviços pode ou não pode fazer quando for a única presença em determinada área. Além disso, faz menção a algo parecido com a venda casada, prevista em nosso Código de Defesa do Consumidor, pela qual PSIs (Provedores de Serviço Internet) terão que oferecer o acesso sem forçar os assinantes a adquirir outros serviços tais como voz e vídeo. No aspecto comercial é um grande embróglio envolvendo provedores de "broadband" (banda larga) como AT&T, Verizon, Comcast de um lado e provedores de conteúdo como a Google, eBay, Yahoo e até Microsoft, de outro.
Oppi - Há uma discriminação perigosa nessa questão de conteúdo pago/conteúdo não-pago. Se a condição para um conteúdo estar disponível em banda larga for a possibilidade de pagar para garantir essa modalidade de acesso, então não teremos aí um monopólio de grandes grandes e médios produtores, hierarquizando a informação e os serviços disponíveis e excluindo (ou reduzindo significativamente) o espaço de mídias alternativas, blogueiros e produtores independentes?
Omar Kaminski - Talvez o raciocínio da pergunta nos leve a uma analogia com o conteúdo da televisão digital. Essa "discriminação", claro, se choca com o desejo de uma Internet como repositório irrestrito de informações democratizadas, porém também existem outras questões que envolvem direitos autorais e licenciamento de conteúdos. Talvez esta seja a verdadeira discussão. Genericamente, o autor, detentor dos direitos autorais pode fazer o que quiser com seu conteúdo, sua criação intelectual objeto de proteção legal.
Ou seja, muitas das vezes é tarefa do autor a escolha da disponibilização do conteúdo por este ou aquele meio. Se o desafio é tentar prever o futuro, talvez tenhamos uma rede dividida ("independente") no futuro em função destes problemas. E talvez surja da própria vontade humana, de não aceitar uma "TV melhorada" e paga, que é o que a internet pode acabar se tornando.
Oppi - A legislação brasileira estabelece o princípio da "neutralidade de rede"? É possível que algo semelhante venha a acontecer por aqui?
Omar Kaminski - As poucas discussões sérias nesse sentido são restritas, e geralmente não alcançam a esfera legislativa nem têm gerado projetos de lei significativos. Prefiro acreditar que nossa pretensa "ingenuidade" nesse campo é benéfica a todos. No Brasil já há um excesso de leis, sofremos de "legismania", será que é também o caso de se tentar regular a Internet pela via legislativa no Brasil? É fácil adiantar que será um desafio e tanto, e na certa passaria por uma reformulação na nossa Lei Geral de Telecomunicações, que é de 1997.
Oppi - De acordo com o deputado Ed Markey, autor da emenda que garantiria a neutralidade de rede nos EUA, a votação da nova lei de telecomunicações pode mudar a internet para sempre. Caso as telecoms sejam vitoriosas isso pode mesmo acontecer? Ou seria do interesse delas manter as coisas como estão para lucrar com o aumento do tráfego, por exemplo?
Omar Kaminski - Talvez seja alarmismo, talvez desinformação, ou ainda, mero discurso político. Além disso a questão envolve um contexto muito específico, uma vez que outras emendas poderão ser também apresentadas. De qualquer modo, creio que o próprio mercado acabará por apresentar alternativas que não impliquem em modificações para pior. Prefiro acreditar na criatividade do que no estrangulamento de opções.
Oppi - Nos EUA, o argumento das telecoms é de que a cobrança por vias privilegiadas é necessária para garantir os investimentos precisos para a ampliação da infra-estrutura de acesso. Como está a infra-estrutura no Brasil? A cobrança de uma tarifa semelhante no Brasil poderia ajudar no "alargamento" da banda e na democratização do acesso a ela?
Omar Kaminski - A criação de mais um tributo ou tarifa (que na certa acabaria repassado ao usuário final) não iria trazer nenhum tipo de garantia de aplicação correta de novos recursos. No Brasil muito já se falou na liberação dos recursos do FUST (Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações) para a inclusão digital, software livre, etc. Mas em tempos de CPIs, de falcatruas em geral e de decepções políticas, é mais coerente ser pragmático e acreditar que não, não ajudaria muito... Salvo se o panorama realmente mudar para melhor.
Oppi - Nos EUA, coalizões favoráveis à neutralidade de rede afirmam que há precedente em relação ao bloqueio de determinados conteúdos políticos por telecoms e empresas de cabo, o que justificaria o temor pelo futuro da internet. No Brasil há registro de algum tipo de atitude como essa?
Omar Kaminski - Há notícias que algumas empresas de telecom estão bloqueando, senão dificultando as ligações provenientes de voz sobre IP (VoIP) de serviços como o Skype. Mas ao meu ver a batalha que justifica o temor pelo futuro diz respeito ao mau-uso da Internet: sem dúvida seus recursos vêm sendo muito mal-utilizados.
Além disso, ainda existe uma quantidade aquém do desejado de pessoas ou entidades comprometidas com causas importantes envolvendo a Rede no Brasil, seja no campo social, jurídico ou político. Para citar algumas: inclusão digital, direitos autorais, privacidade, liberdade de expressão, software livre, cibercrimes em geral, governança.
A própria Internet já se mostrou um excelente meio de mobilização, mas infelizmente está dominada pelos spams, scams, hoaxes e outros "e-lixos", que acabam desviando a atenção de campanhas sérias e entupindo a banda de acesso de todos. Então penso que primeiro deveríamos tentar superar esses problemas, gerando mais massa crítica e amadurecimento, para depois enfrentarmos mais a sério questões como regulamentação.
Oppi - Ainda sobre a história de controle da internet, mas mudando um pouco o foco para as liberdades individuais, está tramitando no Congresso o PLS 279/2003, do Delcídio Amaral (PT-MS).
Ele obriga os provedores de internet a cadastrarem todos os usuários que tiverem conta de email: "Pessoas físicas terão de informar nome completo, endereço residencial, RG e CPF, enquanto empresas vão precisar dizer razão social, endereço e CNPJ. Com seus dados ficarão guardados os nomes de todos os remetentes e destinatários de mensagens de cada um dos seus e-mails nos últimos dez anos, com data e hora de envio". Diz o projeto que o conteúdo não será armazenado, apenas os logs de envio (como existe com os telefonemas).
De alguma forma, ele pode cercear a liberdade de expressão no Brasil? Ele possui brechas que possam levar a algo desse tipo?
Omar Kaminski - O PLS 279/03 é considerado um projeto ainda imaturo, e por enquanto só passou pela Comissão de Educação, e ainda terá que ser aprovado também na Câmara. É importante a preocupação com o cerceamento à liberdade de expressão, porém neste caso específico preocupa-me mais a potencial violação à privacidade. Em mesmos termos, foi noticiado dias atrás um projeto no estado de São Paulo que pretende "autorizar que empresas particulares administrem e vendam a base de dados com a ficha pessoal de todos os cidadãos que tiraram documento no Estado". Parece até brincadeira ou "hoax" (boato).
São questões constitucionais, decorrentes de princípios pétreos do artigo 5º, e destaco alguns: inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (inciso X); inviolabilidade do sigilo das comunicações, cujo sigilo so pode ser quebrado mediante autorização judicial e fins justificados (inciso XII); liberdade da manifestação do pensamento, vedado o anonimato (inciso IV); a liberdade de expressão nas atividades intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (inciso IX), entre outras.
Ao meu ver, e apesar da Carta Magna ser de 1988, período anterior à internet comercial e sem tê-la em vista, é bastante atemporal no sentido de assegurar certas garantias. Certas violações, atos ilícitos e crimes vão continuar sendo assim considerados independente do meio. E diante de lacuna, outras leis terão que ser criadas ou adaptadas. E tais leis não poderão ferir as liberdades e garantias fundamentais sob pena de ilegalidade, inconstitucionalidade.
Marcelo Medeiros
Fonte: RITS
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