Embora aparentemente rejeitado, o projeto de lei sobre crimes eletrônicos, conhecido como PL Azeredo, voltou à pauta de maneira sorrateira. Depois de ser alvo de fortes críticas, desencadeando um movimento de oposição conhecido como “mega não”, que recolheu cerca de 157 mil assinaturas, o projeto parecia morto e enterrado em 2009. Mas, entre o primeiro e segundo turno das eleições, quando o foco da opinião pública recaía sobre nossos presidenciáveis, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara trouxe o PL à pauta novamente. Apresentou parecer favorável e um texto substitutivo, sob relatoria do Deputado Régis de Oliveira.

O Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio analisou o texto do substitutivo e acaba de publicar um estudo sobre o mesmo. O estudo está acessível aqui.

Os fundamentos para rejeição do PL e seu substitutivo são muitos. Ainda que a intenção fosse criminalizar somente condutas graves no âmbito da rede, condutas triviais da cultura digital passam a ser criminalizadas. Por exemplo: a transferências de músicas legalmente adquiridas no seu tocador de MP3 antigo para um novo e o desbloqueio de aparelhos celulares. Pior ainda, o projeto também ameaça o futuro de iniciativas inovadoras no uso da rede. Programadores, gamers, usuários das redes sociais ou simplesmente consumidores fazendo uso legítimo de seus dispositivos eletrônicos, passam a ser facilmente enquadrados como criminosos. E as penas são consideráveis. Por exemplo: o consumidor que compra um tablet, como o Ipad, que foi vendido bloqueado para uso de aplicativos que não fossem produzidos e/ou aprovados pelo fabricante. Considerando a diversidade de aplicativos úteis que são lançados de maneira inovadora à margem da aprovação do fabricante, decide desbloqueá-lo para poder utilizar esses aplicativos a seu critério. Ao fazer isso, enquadra-se no previsto do artigo 285-A, ficando sujeito a pena 1 a 3 anos e multa. Pode-se alegar que dificilmente alguém será processado criminalmente por essa questão, ficando a pergunta: então, por que criminalizar? Nesse caso, criminalizar algo que não se pretende punir, além de péssima técnica legislativa, constitui um grave desestímulo aos empreendedores da rede. Cabe ressaltar que esse tipo de conduta é permitida até mesmo nos EUA que, em julho desde ano, legalizou tal procedimento, denominado jailbrake, justamente sob o fundamente do que trata-se de uma prática de fomento à inovação na indústria de software e à interoperabilidade, além de um direito do consumidor fazer uso legítimo da tecnologia que adquiriu.

Mas questão ainda mais grave vem à tona quando se leva em conta os artigos do PL que propõe um verdadeiro sistema de vigilantismo por parte dos provedores de acesso à rede, obrigando-os denunciar condutas suspeitas dos usuários e a manter, sob pena de multa, dados de conexão dos usuários pelo longo periodo de 3 anos. O texto do substitutivo piora essa questão ainda mais ao incluir os provedores de serviço nessas obrigações. Grave ameaça à garantia de direitos fundamentais como privacidade e ao devido processo legal.

Ademais, é latente a falta de rigor técnico do PL em questão, principalmente ao tratar de conceitos relacionados à proteção de dados, mesclando no termo “dado eletrônico”, ou no caso do substitutivo, “dado informático”, uma diversidade enorme de tipos de dados: registros de conexão, registros de acesso, dados cadastrais, emails, textos, bancos de dados ou qualquer conteúdo no formato digital. Essa generalização traz excessiva indefinição e, portanto, incertezas perigosas, capazes de ameaçar ainda mais os direitos de privacidade e minar uma área importante para o desenvolvimento nacional num contexto internacional em que as Tecnologias da Informação e Comunicação aparecem como setor estratégico da economia.

Portanto, é preciso estar atento aos argumentos equivocados que apóiam o projeto sem levar em conta o desrespeito a desses direitos. Não se pode tratar o texto como sendo um projeto anti-pedofilia, quando o tema é tratado em apenas um artigo, dentre vários outros que abrem margem para a criminalização massiva. Nem invocar Convenção de Budapeste sobre Cibercrimes para legitimar o texto. Cabe lembrar que o Brasil não é signatário desta Convenção, ratificada por apenas 30 países, principalmente, aqueles que já regulamentaram a Internet do ponto de vista civil.

Esse sim é um ponto a ser enfatizado: a internet brasileira precisa de uma regulamentação civil, especialmente para regular um assunto complexo que demanda definições técnicas prévias, que ainda não foram pensadas legislativamente no país. Nesse contexto, é de suma relevância descartar o PL em questão e dar atenção à fixação de patamares básicos.  Para tal, é preciso levar adiante o processo de construção do Marco Civil para a Internet no Brasil, que, de maneira colaborativa, utilizando-se da própria rede, visou trazer definições técnicas, estabelecer princípios, garantias e direitos dos usuários de Internet e delimitar deveres e responsabilidades a serem exigidos dos prestadores de serviços. Ao contrário do PL Azeredo, que tende à tramitar na surdina, o processo do Marco Civil tem sido reconhecido, inclusive internacionalmente, por ser uma iniciativa transparente e de vanguarda pelo uso que fez das ferramentas da rede para fomentar a participação democrática no processo legislativo.

Fonte: Joana Varon - a2k